Obras e percurso

[Escada -1950]
Las escaleras de Clark son un lugar de paso, el flujo ambivalente de subir y bajar, um tránsito de opuestos. Conforman la génesis de las dualidades que preocuparán a la artista en el futuro: “Soy el dentro y el fuera: el derecho y el revés. (Paulo Herkenhoff. In: Lygia Clark. Barcelona: Fundació Antoni Tàpies ,1997. p.36).
Essa preocupação, que revela a divisão subjetiva de Lygia, pode ser rastreada em toda a sua obra, tanto na vertente da arte como em seus escritos. Esta dualidade conflitante e reiterada vai ser subvertida de diversas formas, numa tentativa recorrente de encontrar a “integração de tudo” que se expressa em sua produção pela anulação dos limites da moldura instaurando uma continuidade entre a obra e o espaço que a circunda.
Durante a década de 50, ela vai trabalhar com as superfícies e os planos nessa perspectiva de diluir fronteiras até chegar aos “Casulos”, que marcam “A morte do plano” e introduzem o que ela chamou de “vazio pleno”. Os casulos, lugares de gestação, vão desembocar nos “Bichos”, estruturas em metal que articulam vários planos e podem ser movimentados e transformados pelo espectador.


[1957 Plano 5]

[Casulo]

Com a série “Bichos”, a partir de 1960, ela inicia uma verdadeira subversão da arte: 1º) propondo que o objeto de arte não seja apenas visto, mas também tocado; 2º) introduzindo os outros sentidos do espectador na cena artística; e 3º) incluindo-o na própria criação, não mais como observador, mas como sujeito co-autor da obra. É o início do que se configurará como “proposições” e que vai implicar o apagamento do artista como autor da obra.


[Bicho-1960]

Por volta de 1963, ela propõe que o espectador, que já é então co-autor participante da obra, crie uma fita de Moebius7 que cortará em toda a sua extensão fazendo a experiência da continuidade entre o dentro e o fora – que ela chama de “Caminhando”. Nessa experiência com a banda de Moebius, Lygia encontra uma intimidade entre o eu e o outro, o artista e o espectador, ou, ainda, entre a obra e o espectador/participante, numa relação de continuidade que promove a fusão entre o eu e o outro. O objeto criado perde a importância e o ato criativo assume todos os privilégios, de forma que podemos pensar que é da posição de sujeito que se trata nessa tentativa de Lygia de, a partir do outro (o participante), encontrar seu próprio lugar nesta relação dual, de espelhamento, pela via do ato.




[Caminhando]

O ato assume aqui o valor de obra, independente do objeto criado e do eu do artista/criador, que se unificam através da continuidade que o próprio ato produz entre o espectador/participante e o objeto real que se desvanece a cada transformação. Lygia aprendeu que o eu é ilusório, o sujeito é volátil e que só o ato pode dar-lhe a consistência de sujeito.


[1963 - O dentro é o fora]


[1963 - O antes é o depois]


[1964 - Trepante] 

De “O dentro é o fora” e “O antes é o depois” (1963), frutos dessa fase, ela passa a criar os “Trepantes”(metálicos) e as “obras moles” de material flexível (borracha), que ainda privilegiam o sentido da visão e a“mostração”8 da continuidade. Mas não por muito tempo, pois esta fase vai desembocar na “Nostalgia do corpo”.


[“O eu e o tu”]
(Nostalgia do Corpo)


[Máscara Sensorial]

A mostração da continuidade através desses objetos moebianos, calcada na identificação imaginária com o outro, não dá conta da construção da subjetividade. Esta fusão parece não dar certo e, talvez por isso, a partir daí o corpo é convocado. Cada um dos sentidos vai ser explorado pela artista através de objetos criados para estimular, primeiramente, novas percepções e, gradativamente, a sensação, mais além da percepção e do sentimento.
Nesse tempo, Lygia passa por uma fase de grandes privações que a impedem de obter material para sua criação. Passa, então, a utilizar todo tipo de material que encontra para despertar uma experiência sensorial e estética no participante. Ela pretende estimular a produção de sentido a partir da dimensão estética da subjetividade9, experiência que ela própria vivenciou e que vai desenvolver e aprofundar até o final de sua obra, inclusive com objetivos terapêuticos.
Até essa fase, Lygia viveu intensamente a dualidade que já mencionamos e que promoveu a repetição incessante da continuidade entre sujeito-objeto: “O dentro é o fora”, “O antes é o depois” e, finalmente, “O Eu e o Tu”. Nos fragmentos de uma carta a Hélio Oiticica de 11/08/70, podemos ler sobre o apagamento que o sujeito sofre nesta tentativa de encontrar no outro (em espelho) uma nominação não apenas através da arte, mas também na vida. Na carta, Lygia revela uma grande angústia pelo fato de não poder encontrar a si mesma através desta fusão com o outro, pela indiferenciação que se estabelece:
Passei ou ainda passo por uma vivência nada gratificante. É como se tivesse perdido minha cara. Me vejo em todos, podendo ser todos, tal a identificação, menos eu própria! Estou à procura da minha cara e tem dias que me encontro, mas é raro e espero o dia lindo em que poderei fixar minha fisionomia tal qual é e aceitá-la na maior alegria[...]
Poucos dias após esta carta, ao chegar à Espanha, ela vive uma grande crise que vai resultar na descoberta de uma cara própria, uma subjetividade singular, e promover o desenvolvimento de uma nova série criativa. Na carta de 22/10/1970 a Hélio Oiticica ela descreve a crise e relata seus efeitos vividos no dia seguinte:
[...]a fusão das duas coisas está se fazendo e Carboneras foi para mim fundamental, pois lá vivi, numa só noite, o primeiro choque direto vindo de percepções da vida e passei uma noite alucinatória como se tivesse tomado L.S.D.!...
[no dia seguinte] ...quando me vi no espelho, descobri maravilhada que minha cara, que há muito havia perdido, estava lá, olhando para mim; foi como se me reencontrasse depois de viver “o outro” tanto tempo, e hoje me sinto eu mesma! Depois disso me pergunto se ainda precisarei fazer proposições, pois o que preconizo – arte-vida – já foi desencadeado diretamente em mim nessa noite!
O que ela chama de “fusão das duas coisas” eu traduziria como o encontro com seu desejo, ou seja, o confronto e reconhecimento entre o eu imaginário e o sujeito do desejo inconsciente. O efeito disto é o de apaziguamento da divisão subjetiva pelo surgimento de uma identidade que advém do “errar para encontrar um caminho pessoal e único”10 na própria singularidade de seu objeto. Nesta nova pele de sujeito, liberta da alienação ao gozo e desejo do Outro, Lygia aprofunda sua exploração do corpo e suas sensações, como se buscasse recuperar o prazer dele emanado para usufruir desta condição de ser sujeito do desejo e do prazer. Esta elaboração que envolve a estrutura e a arquitetura psíquica também encontra correspondência na sua obra e abre para uma nova vertente: O “Pensamento mudo”.


[Pensamento Mudo]

Esta fase do “Pensamento Mudo” expressa “o simples viver”, segundo ela própria, pois é a conseqüência desta libertação do Outro e por isso não exige a criação de um novo objeto como representação. É apenas um novo sentido que surge para Lygia que vem apaziguar o conflito interno que até então reinou. Este sentido novo possibilita a reorganização da economia libidinal e uma nova relação do sujeito com o desejo e o mundo.
É a partir dessa posição de sujeito que Lygia passa a explorar a “Fantasmática do Corpo”, fase que vai propor o que ela chama de “Corpo Coletivo” em que os participantes exploram mutuamente suas sensações corporais usando todo tipo de material. É desta fase a “Baba Antropofágica” que emerge de um sonho em cujo relato podemos ouvir a construção da fantasia e a sua transposição e realização no ato artístico.
No momento em que Lygia está dando aulas na Sorbonne e se analisa com Pierre Fedida, ela se aproxima da psicanálise. Podemos saber disto por um fragmento de entrevista concedida a Roberto Pontual do Jornal do Brasil, em 197411, quando ele pergunta o que é a “fantasmática do corpo” e ela responde que:
É um trabalho de fronteira: é impossível defini-lo com precisão. A partir de determinadas vivências, e de sua expressão verbal em grupo, chego às margens da psicanálise. Por isso, com a intenção de converter-me em um suporte sólido, estou me analisando em profundidade com Pierre Fedida, cujo interesse pelo redescobrimento do corpo o aproxima de mim. ... Cria-se um corpo coletivo. E precisamente meu silêncio, minha escuta, o receber o que eles me entregam nesse momento, é o que constitui agora a parte mais intensa de meu trabalho. Como na psicanálise, o que importa não é o fato em si, a figura da mãe ou do pai engolida na infância, senão o que a envolve, a fantasmática que se lhe confere. E em tudo isso, lanço também minha própria fantasmática para ser elaborada pelo outro.... Elaboro um rito em que cada um dos participantes termina assumindo seu próprio mito. (Texto completo no Catálogo da Fundació Antoni Tàpies,1997. p.314).
Dessa forma, Lygia caminha transformando o que era objeto de arte em objeto de uma experiência vivida na qual o outro põe em ato as cenas da sua fantasia; de forma que o ato criativo se torna cada vez mais um ato do participante, cada vez mais autor.


[Baba Antropofágica]


[Estruturação doSelf]

Daí para a “Estruturação do self”, sua próxima e última fase não há mais que um desdobramento que a leva a propor, inspirada em Winnicott, Laing e outros autores psicanalistas, o “objeto relacional”, que “se define na relação estabelecida com a fantasia do sujeito”, segundo sua própria definição. Sistematizando seus procedimentos, Lygia passa a aplicar como técnica terapêutica aquilo que se iniciou como uma criação artística. Como propositora ela promove a experiência do vazio de sentidos, força a construção de representações, buscando que esse pequeno outro produza seu objeto e se faça sujeito da fantasia. Na visão de Suely Rolnik (2001), ela busca desta forma promover “a desobstrução da dimensão estética da subjetividade”12, que seria o objetivo da clínica em última instância. Sugerimos que a estratégia é de, produzindo representações de coisa e de palavra, produzir os significantes que faltam no discurso do sujeito.
Se o final de um processo de análise oferece ao sujeito a possibilidade de ocupar a posição de analista, talvez possamos aqui fazer um paralelo e pensar que Lygia, após esse percurso de elaboração que envolve o atravessamento da própria fantasia, tenha desejado estar nesse lugar de objeto supondo que assim poderia promover no outro uma construção a partir do imaginário que a sua técnica estimula.
Entretanto, para além de toda a polêmica que esta prática gerou – e ainda pode provocar – a respeito dessa técnica enquanto terapêutica, o que realmente pretendi abordar neste artigo através dessas articulações entre a arte e a vida de Lygia Clark é fundamentalmente o percurso de um sujeito que, em seu processo de elaboração de uma identidade, dispõe da arte como instrumento para manusear a fantasia como matéria-prima. Pretendo aqui marcar os efeitos que a arte pode operar no nível da construção de uma subjetividade liberta do desejo e do gozo mortificador do Outro.
Esta tentativa de abordagem do fenômeno Lygia Clark deixa em mim a certeza de que sua produção merece, entretanto, um estudo muito mais aprofundado já que a consistência de seus textos e de sua obra artística pode ensinar aos psicanalistas as artes do sujeito em sua própria constituição, como operação lógica discursiva que independe de uma cronologia espaço-temporal.
Para finalizar, recorto mais um trecho de seu diário inédito onde encontrei o motivo para o meu título e o esquema para desenvolver o trabalho:
Como poderia escrever meu livro?
Me pergunto todos os dias e vejo a dificuldade.
Seria de como saí da loucura para a vida através da arte e depois como saí para a vida através da arte, deixando de fazê-la. Esse é o esquema, mas entram todas as vivências na arte, a percepção das mesmas na vida, os sonhos que formularam muitas vezes o processo da conscientização. Sem ilustrar o processo, sem tempo linear.

(Trecho dos diários, sem data, certamente posterior a 1971/72, “Pensamento Mudo”)

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